quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

TRAVADO

Se você tivesse tempo
Se o teu tempo fosse de novo teu
Eu diria o nome da minha doença
Do meu humor sem bússola
Da minha febre que rasura o amor enlatado

Se você tivesse vida
Se a tua vida fosse de novo tua
Eu mataria a fome que te espreita
O legado que te sufoca
O amor que disciplinadamente você odeia

Pra você
E só pra você

Se você tivesse alma
Se a tua alma fosse de novo tua
Eu te amaria de novo
Como fiz nesse segundo passado
Esse agora
Ontem e amanhã
Aqui comigo, travado

No Quarto Banido

Já vem então
Não há porque não se perder
Ele vem com seus olhos de abismo
Derrubando com a ponta do nariz os anjos febrís que buscam refúgio
Os fantasmas sem teto
Os risos
Aqueles que um dia atravessaram a casa
E que hoje jaz esquecidos e sonolentos

Os dedos ágeis trepando com a máquina de confessar maluquices
Separa numa mão o seu bem
E na outra a culpa de ser como é
E a solta pela janela
Nunca mais e Amém

Ele vem
E Sampa ronca o seu sono de cimento
A norma que devora o tempo das pessoas
Devora o bom dia das pessoas
A gargalhada proibida
O amor medido na régua das conveniências

A moça da loja de conveniência
Cansada daquilo
Cansada do expresso que eu peço
Camisa, bermuda e chinelo

Seguem a correnteza os que têm desse juízo

Mas, na solidão
Só encontram as secretas respostas aqueles que teimam
E que se arriscam nesse particular deserto
Ninguém sabe
Mas no quarto banido existe um outro tempo

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

FÉRIAS

Poxa, o que foi acontecer?
Acordei agora daquele sonho assim
Com medo da saudade em mim
O tapete onde descansava a voz
Os anjos sem casa
Caminhando na calçada da avenida 13 de maio

Poxa, como foi acontecer?
Avistei o sol bem antes da noite morrer
Com a solidão que alguém me deu pra viver
Na cara os olhos da distância
A língua lembra do corpo do café
Os anjos ali sem nada
E a gente zombando de toda tolice séria
E a gente zombando de toda essa tolice séria
E a gente lembrando que aqui todo mundo só está de férias

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

MEU ESTRANHO

Ah, não vou não
Deixe eu cá no meu tempo
Deixe eu chorar e sorrir do meu jeito
A inquietude é um livro que você nunca leu
Quem sou eu mas te digo
Hoje não, meu amigo
Hoje não

Se vou lá é sempre aquilo
É sempre o mesmo
Vão me cuspir um falso elogio
Vão me sorrir antes do tiro contra o meu riso

Quem me diz o que era bom?
Quem é tolo pra dizer como é que se faz?
Cadê o homem que traz a benção,
Dos gênios embalsamados da televisão?
Hoje não,
Hoje não

Ah, não vou não
Gosto do tempo que não te dou
Gosto de andar a pé pelo meu coração
No quintal dos meus olhos o teu medo nunca me nublou
Eu já vou mas te aviso
Hoje não, meu estranho
Hoje não

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

FOI O CARNAVAL (O ANO DEPOIS)

Ah se te contarem depois
Se te falarem de mim
De como eu sorri por aí
De como eu ferrei com ternura
A voz dessa gente miúda
Que aponta o dedo pra mim
E se caga atrás da máscara

Ah o coração se mostrou
A Minha alma sem fim
No relógio da catedral
No café que eu engoli tão feliz
Pois é o que é solto assim
O fogo que minha pena desenha
Nas pedras de um país

Me jogue então com violência
Na tua mais triste gaveta
No teu mais fundo alçapão

Prometo habitar esse distante planeta
E se num dia qualquer
Teu cuidado tropeçar no meu nome
Olha que coisa mais feia
Minha vida não é mais teu dilema
Minha vida não é mais tua fome

Ah se te contarem depois
Se te falarem dos saltos
Meus pés brincando os asfaltos
Onde a vida voltou
Eu no porão dos teus olhos
Olha, a vida voltou!
Eu no sertão do teu gozo

Ah quanta coisa eu sonhei
Meu sorriso eu doava
Tantos abraços eu dava
Tantos amigos eu amava
Foi o carnaval
Foi o carnaval

ANA E O SOL

E quando vai pela calçada
Ascena de leve
Tatuagem na mão
Nenhuma palavra
Nenhuma alusão

E quando vai pela chuva
Decora as calhas
O som das poças
Nenhum remorso
Nenhum palavrão

E quando já se estica a manhã
Ana prende a respiração
Descasca as perguntas
Dos índios que moram no seu coração

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

A Maldade

A maldade usa saia
Espera por você depois da tua risada
Dá-te o que mais te falta
E só depois
Ali, bem na lua alta, a maldade já foi embora

A maldade usa saia
Primeiro luta a tua secreta batalha
Derruba a tua muralha
E só depois
Ali, bem na lua alta, a maldade já foi embora

A maldade usa saia
E você na paz do teu colo
Entre as coxas
Entre os braços
No pescoço
Na nuca
No cheiro pedantemente certo

A maldade usa saia
E você desaba naqueles seios
O calor da cama
O odor sacana
O gosto
A boca pedantemente carnuda

A maldade usa saia
Fica nua com cara de coitada
Fica nua e você já nem pensa mais em nada

A maldade pede o teu sobrenome
Te promete um filho
Cuida da tua febre

A maldade tem um olhar leve
E você nem percebe que são olhos de quem já vai embora

A maldade te esquece
E nem olha de volta pra ver se você ri ou chora

SÓ UMA CARTA

Eu passeio por aí
De um telhado um ponto vão
De uma janela um estranho
De cima
Lá pra cima
Lá do alto de onde despenca cada alma
Um risco luminoso de vida

Eu nem te condeno por não saber o que sou
Quero livre o que levam de mim
Eu nem me explico
Dê-me um espaço no teu tempo
Dê-me isso que eu desconheço
Que te dou o meu coração

Eu passei por aí
Era o perdão na mão oposta
Era o carnaval aos olhos de uma criança
Era riso
Tão mais riso
Tão mais preciso que a tranca nas portas
Um dilúvio de alegria

Eu nem te condeno por não lembrar o que sou
Quero teu o que quiser de mim
Eu nem me explico
Dê-me tua insônia mais aflita
Dê-me uma saudade bonita
Que te dou uma oração

Eu sumirei por aí
Num balcão um nome antigo
Num lugar aquilo invisível
Antes disso
Bem antes daquilo
Antes dos móveis e dos vidros
Antes do concreto
Na grama que meus pés corriam
Quando o amor não me levava assim


Quando o amor ainda não era doido por mim

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

UM DESSES


E se você nem sempre sorri num adeus
Se você retruca a vida embalada e pronta
A cesta de combinadas surpresas

E se você é um desses
Enquanto eles te dão a culpa
Enquanto eles te dão a lista dos teus pecados
Você dá ao mundo
Incansável e livre
O teu absurdo coração
E tudo o que há na plenitude da tua singular missão

E se você às vezes chora no meio do dia
Se você aceita o refúgio sábio da lágrima
Pois a tua força é a tua imperfeição

E se você é um desses
Enquanto eles contam as moedas
Enquanto eles compram o riso com o cartão
Você vai ao fundo
Incansável e livre
E volta cada vez mais certo daquilo que é a tua missão