sexta-feira, 29 de abril de 2011

VENTANIA

Corria os olhos por toda a sala
Ela era a dona das suas coisas
A dona do mundo
Um mundo sem qualidades pois todas as qualidades nela se aglomeravam
Um mundo mole
Magma que ela moldava conforme a sua vontade
As suas verdades mais mentirosas

Eis que então
Um vento a desafiou
Um vento fora dos seus planos
Jogou o queixo à frente
E com as pernas e os braços pôs-se a correr pela casa até a janela
Escancarou-a como uma deusa em sua ira

Lá fora estava Ele
O vento que ia e vinha de todas as ruas
De todas as noites possíveis
De todas as magias improváveis
De todos os milagres inacreditáveis

O vento a conhecia em sua escureza de certezas confortáveis
O vento era seu dono sem usar de força
Sem apontar-lhe sequer o dedo
Feito um veneno irresistível
Feito aquilo que existe antes mesmo do mundo

Tinha nela carinho e revelia ao mesmo tempo
Brincava com ela
Fazia brotar dentro dela ressacas e calmarias
Revoluções e confrarias
E ela finalmente
Despida de imprestáveis qualidades
Viu-se mulher
Viu-se entregue
Viu-se minha
Visto que era eu quem sobrava aquela ventania

segunda-feira, 25 de abril de 2011

ENTENDE NADA

Não entende não é mesmo?
Teima em tentar me derrubar com tanta potência
Desmonta-me do que compreendem teus olhos
Tenta me ver por dentro
Tenta ver o que só a mim pertence
Não vê nada
Tens apenas os olhos da cara
Não tem os olhos do espírito
Não tens de mim nada
Rouba minhas lágrimas
Poupa meu riso no baú de tuas coisas?
Coisa pouca
Coisa nenhuma
Tritura meus sonhos
A música do meu peito
E mesmo antes do teu inverno
Do falso inverno da minha derrota
Do pó de minha alma me refaço todo
Feliz tolo e inteiramente novo
O mesmo
A mesma gargalhada inocente
Homem e criança
Pronto para inventar meu próprio mundo

Não entende não é mesmo?
Levanta a mão contra minha inquietude luminosa
Acorrenta a luz que meu olhar desbota
Tenta me apagar do mapa
Tenta apagar a minha voz levada
Não pode nada
Tens a força que nada move
Não tem a coragem da estrada
Não tem a minha estrada
Rouba meu afago
Amarra meu amor numa tempestade
Amor eu faço como bem entendo
Amor eu dou de graça
A qualquer hora
Você não entende mesmo nada

domingo, 24 de abril de 2011

A CHUVA DAS PRIMAVERAS

Algo me alcança sem que eu espere
Como algo novo numa manhã comum
A surpresa da chegada de alguém perdido
Esquecido entre os giros do ponteiro do relógio
O céu
Nublado mas feliz
Tanto faz a umidez da chuva leve
Jaz aquele daquele tempo
Aquela avenida
A grama do jardim dos fundos
Suada depois da madrugada
As nossas cabeças que voavam para outros continentes
Outros planetas, outras vidas
Gritávamos numa alegria
Enfeitávamos todo o mundo com nossas invisíveis alegorias
Um sinal! Um sinal e o farol todo absurdo
Quem vai dormir e qual será a casa de hoje?
Um filme, um livro
O baseado e a febril tosse
A total falta de vontade de qualquer posse fútil
Eis que tudo já havia e já habitava os nossos corações
Tão livres e loucos
Malucos de tudo
Incólumes de todas as bobagens da vida escravizada
Enquanto o mundo tentava nos abater com suas fornalhas
Com suas mãos de moer gente e fazer pedra
Em assalto roubávamos toda possível risada
Pois já era nossa antes mesmo de toda esta boba terra

Algo me alcança
Algo que habita a música de minha alma e que eu esqueci
Que despencava leve e potente com a chuva das primaveras
Algo que eu esqueci
Mas que hei de lembrar outra vez
Pra sempre

segunda-feira, 18 de abril de 2011

ROUPA

Tem pressa não meu coração
É tudo cena
Santo de barro
Loira morena
Box sem cigarro

Tem pressa não meu coração
É só teatro
Alma sem asa
Língua de metro
Rainha sem casa

Porta sem tranca
Tufão de nada
Verdade manca
Mentira pelada

Beijo sem língua
Bolso furado
Poço sem água
Riso forçado

É um banheiro sem fechadura
É desespero e ditadura

Rosto fechado
Peito escancarado

Fruta de cera
Olho de espera
É o que já é e o que já era
Já era e era
Era fundo azul
Chroma key
Venha aqui me dizer só a verdade que nos falta pra enfim tirarmos a nossa roupa

domingo, 10 de abril de 2011

ENTÃO TÁ (TARDE DE DOMINGO)

Então tá
Hora pra acordar
Hora pra correr
Hora pra sorrir
Hora pra ser sério
Hora pra comer
Hora pra dizer bom dia
Hora pra dizer olá
Adeus, adeus
Deus me espera escondido dentro do armário

Então tá
Hora pra dizer
Hora pra mentir
Hora pra esconder
Hora pra contar
Hora pra brigar
Hora pra voltar
Hora pra ouvir aquela canção

E se não fosse você quem seria eu?

Então tá
Hora pra acordar
Hora pra ouvir
Hora pra berrar
Hora pra calar
Hora pra fingir
Hora pra chegar em casa
E no teu canto secreto poder chorar

Fui eu
Fui eu e eu sei
Meu brinquedo de te perder
Adeus, adeus
Deus me espera na torrente do gole de cachaça

Então tá
Hora pra tentar
Hora pra fuder
Hora pra quase amar
Quase dor
Quase gente
Bem à frente quando a frase vem te metralhar
Quando a tua retina fotografa a alma da ilusão evaporar

Quase amor?
Então tá

quinta-feira, 7 de abril de 2011

EM RESPOSTA

Ora, tenha dó
Tua conversa é uma náusea sem ao menos a bebedeira da noite anterior
Tua fé nessas coisas é tão real como ervilhas no rótulo de uma lata

Faça isso por favor
Fale mal de mim
Diga que eu sou todo errado
Um fantasma assim
Que vive desocupado das tuas quinquilharias

Pequena mulher
É tenro o gosto do meu tempo
Minha vida
Minha catedral
Fecha o teu rosto feito que não topo
Essa apatia tão normal

Vê meus defeitos e se achas tão melhor
Vejo os teus e me sinto teu irmão
Teu homem feito de sim e de não

Domo-te o corpo
Os braços agudos
As ancas aflitas

Domo-te os olhos
As batidas do teu hoje desvendado coração
Preso e torto em ti
Louco e livre em mim

Não importa a distância
Não importa o tempo
Qualquer veneno desse teu bobo cotidiano

Eu existo em você
Para além de você